Memórias de um Ex-sargento – 3ª Crônica “O Bonde”
Uma crônica que retrata os desafios e encantos dos primeiros dias no Rio de Janeiro durante a década de 1940
Fazia poucos dias que eu chegara ao Rio. Saí de Dianópolis no dia 3 de janeiro de 1944, num caminhão do senhor Manoel Antônio da Silva, um pernambucano que tinha a mania de sair desbravando o sertão à força de pneu de caminhão com ignição à manivela. Ele se intitulava Leão do Norte ou Bandeirante por causa desse espírito aventureiro que tinha no sangue, esse irreprimível desejo de andar por onde não havia estrada — nem picada, às vezes.
Embarcando em Barreiras, cheguei ao Rio pelas 17 horas do já referido 17 de janeiro, pousando no aeroporto Santos Dumont.
— Pra onde vai o moço?
— Pensão da Rua Ipiranga n.º 32, nas Laranjeiras.
A guerra estava em plena evolução, e todos os automóveis particulares usavam gasogênio como combustível, pois a gasolina era destinada às forças armadas e às autoridades. Os depósitos de carvão ficavam afixados nos para-choques traseiros, e havia uma grande quantidade deles em circulação.
Embora eu ainda estivesse sentindo náuseas consequentes do longo voo, os letreiros luminosos de várias cores que eu via no itinerário me chamavam a atenção.
Finalmente, cheguei ao endereço onde apresentei uma carta de recomendação dirigida ao Juarez de Sousa, barreirense que trabalhava no Cartório do 6.º Ofício de Notas, do Dr. Francisco Rocha, ex-deputado baiano, localizado na Rua do Rosário.
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Ali trabalhavam também os irmãos Arquias e Bossuet Rocha, parentes do ex-deputado, além de outros baianos. Como o Juarez não estava, fiquei aguardando sua chegada, enquanto um garoto de uns dez anos de idade disparava uma carrada de perguntas, apesar de perceber que eu estava indisposto, ainda sentindo náuseas.
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Queria saber de onde eu era, onde ficava minha terra, se era longe, se a viagem foi boa, se tinha viajado de automóvel ou de trem — e mil perguntas outras. Eu respondia com meias palavras, tal a indisposição em que me achava, mas o menino não me largava.
— Menino, depois! Estou indisposto.
Seguindo-se pela Rua Ipiranga, num sentido, perto da pensão, ficava a Rua das Laranjeiras; no outro, a Rua Paissandu, com renques de belas palmeiras de ambos os lados.
Nos dias seguintes, eu saía com aqueles baianos para aprender a andar na cidade grande, familiarizando-me com as ruas principais e com o itinerário rotineiro. Tomávamos o bonde Laranjeiras ou Águas Férreas, saltávamos no Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, seguíamos pela Rua Almirante Barroso, Avenida Rio Branco, até a Rua do Rosário, onde ficava o cartório do Dr. Chiquinho Rocha, como era chamado pelos conhecidos.
Com poucos dias, eu já era capaz de percorrer algumas ruas do centro e voltava à pensão, no bairro das Laranjeiras. Os bondes, muitas vezes com os estribos cheios de passageiros, exigiam cuidado especial do condutor, que tocava a sineta sempre que havia algum perigo para os passageiros do estribo.
— Olha à direita!… Tim, tim! Tim, tim!
Usando um colete cheio de bolsos para guardar as moedas e um paletó por cima, o condutor saía de banco em banco cobrando as passagens e tinha que fazer prodígios para equilibrar-se nos estribos apinhados de gente, com as mãos cheias de moedas e cédulas dobradas em comprido entre os dedos. Fazendo retinir as moedas entre a palma da mão e o dedo médio, o condutor cobrava, geralmente com voz de português:
— Faz favore!…
Em verdade, quem conduzia o bonde não era o condutor, mas o motorneiro — o homem que ligava o motor elétrico, movendo um reostato, fazia andar e parar a máquina, enquanto o condutor não passava de simples cobrador…
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Numa dessas viagens, eu ia no estribo, embora houvesse lugares nos bancos. Na esquina da Rua Pedro Américo com a do Catete ficava o 4.º Distrito Policial, em cujas proximidades havia um caminhão estacionado, que não percebi. O condutor, por sua vez, não deu o sinal de advertência, pois só havia, talvez, umas três pessoas no estribo e o bonde ia com poucos passageiros. Senti uma violenta pancada na cabeça e ia caindo, mas segurei firmemente o balaústre e me inclinei para dentro do bonde, onde um passageiro me segurou.
Gritaram para o motorneiro parar, e eu desci amparado — não me lembro se pelo Arquias Rocha ou pelo Juarez de Sousa.
Levado para uma farmácia que ficava ao lado do distrito policial, fiz um curativo de emergência, e dali mesmo telefonaram pedindo uma ambulância para levar-me ao pronto-socorro, onde me deram cinco pontos na cabeça, a sangue frio, sem anestesia.
De cabeça enfaixada, fui andando de volta para a pensão. Depois, aqueles baianos inventaram uma anedota a meu respeito. Contavam que, quando o condutor gritou “olha à direita”, eu olhei…
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