Memórias de um Ex-Sargento: 6ª Crônica – A queda da ditadura Vargas
Um jovem soldado relata as tensões reais vividas no Forte Duque de Caxias no dia da queda de Getúlio Vargas, em 1945.
Meu fuzil estava estufado de balas, as cartucheiras cheias, a tensão aumentando de instante a instante. Ouvíamos o telefone do gabinete do comandante e apenas conjeturávamos.
Conversar? Talvez trocássemos monossílabos, pois os nossos sensores estavam por demais envolvidos na tarefa de captar os mistérios daquela data, que se tornava cada vez mais diferente das outras, pobres e anônimas datas.
Às 18 horas, o Capitão Aldo Pereira chegou ao corpo da guarda e mandou chamar os dois soldados de reforço que guardavam as entradas da praça. Com uma automática na mão direita, ele transmitiu instruções especiais.
— Fiquem atentos! Quando eu der um tiro de pistola, vocês do reforço venham rastejando pelas orlas, pois vamos varrer a praça com fogo de metralhadoras e fuzis. Não descuidem! Venham depressa rastejando, um pela praia e outro colado ao muro!
Volvendo-se para nós e para as guarnições dos postos de metralhadora, acrescentou:
— Como ouviram, ao meu sinal, abram fogo!
Num tique nervoso profundamente emocionante, os nossos indicadores acariciavam os gatilhos. Atirar em quem? Este era um detalhe que, no momento, pouco interessava. Se houvesse necessidade, ia sair muito tiro.
Os segundos corriam lentos e inexoráveis, enquanto a noite envolvia toda a cidade, deixando ver o longo colar de luminárias que douravam e ornavam o colo da bela que era Copacabana, prestes, ao que tudo indicava, através do que sentíamos, a testemunhar importantes acontecimentos.
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Às 19 horas, aqueles soldados que, durante longas e tensas horas, ficaram deitados no asfalto com os fuzis apontados para a praça, tiveram ordem de relaxar um pouco a vigilância, enquanto alguns outros foram postos ali, num momento em que visivelmente (ou sensivelmente?) a tensão diminuíra, como uma caldeira que deixasse esvaziar o excesso de pressão.
Ficamos ali no corpo da guarda, sentados em camas. Coloquei meu fuzil entre os joelhos, o cano roçando meu ombro direito. O alívio das tensões muito fortes a que estivera submetido durante toda a tarde causara em mim um efeito tranquilizante. Debruçado sobre os joelhos e meio apoiado no fuzil, adormeci profundamente. Creio que dormi naquela posição durante duas horas, seguramente. Passava das 22 horas quando despertei. Assustado, percebi que os companheiros, por brincadeira, deixaram-me ali dormindo. Coloquei-me de pé. Percebi que o sentinela da guarita havia sido recolocado no seu posto.
— Cadê o pessoal?!…
Ah, tá todo mundo no rancho tomando chá com pão. Agora todo mundo vai dormir. Não tem mais nada!…
O chá era de mate, de cor esverdeada, e por isso os soldados o chamavam de chá de gandola, aquele blusão de campanha verde-oliva. Diziam os soldados que aquilo era destinado a aplacar o ímpeto dos jovens que, durante o dia, gastavam suas energias em estafantes exercícios físicos e, à noite, as tinham sublimadas pelo chá. Eles puseram até um apelido nele, no chá, apelido que não posso mencionar aqui. (Quem quiser saber, pergunte a um reco, se é que o chá ainda é usado…).
Naquele instante, comecei a sentir medo, um medo resignado e explicável. Eu estava escalado para o reforço da Avenida Atlântica, no quarto que começava às duas horas da madrugada. Então, eu pensava: essa era a hora melhor para atacarem o quartel. Começariam matando quem estivesse no reforço, mais afastado do quartel. Eu acreditava que minhas preocupações estavam bem fundamentadas.
De fato, perto das 19 horas, estivera no reforço da Avenida o recruta José Alfredo. Do ponto onde me achava, com os companheiros apontando para a praça, ouvimos o barulho característico de um tanque de guerra: trá-trá-trá, trá-trá-trá, uma mistura do barulho do motor com o das lagartas que se moviam sobre o asfalto. Como que movidos automaticamente, voltamos nossas armas para aquela direção, enquanto nossos indicadores se aconchegavam aos gatilhos.
Lá adiante, no início da Avenida Atlântica, José Alfredo — reco bom, corajoso, a quem rendo minha homenagem (Por onde andará você, companheiro?), não se deixou intimidar. A ordem que ele tinha era taxativa: não deixe passar ninguém.
De onde ele estava, ao pé do Morro do Leme, onde embeiçava um muro do quartel, media uns 100 metros. Distante uns 50 metros, quase no alinhamento do muro da frente do quartel, havia um obelisco. À direita, saindo da Praça Almirante Júlio de Noronha, a Rua Gustavo Sampaio, onde morava Ari Barroso, autor de Aquarela do Brasil, flamenguista apaixonado, narrador faccioso de jogo de futebol, principalmente quando um dos times era o de sua paixão. Era conterrâneo do Sargento Antônio Ventureli, mineiro de Itajubá.
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29 de outubro de 1945, uma data que marcou a história do Brasil
Em ocasiões normais, entre as 6 da manhã e as 22 horas, o obelisco era contornado pelos automóveis, naquele início da Avenida Atlântica.
José Alfredo, como bom soldado, sabia cumprir ordem superior. Sabia que os superiores gostavam de ver soldado cumprir suas ordens. Não teve dúvida. O fuzil, que estava pendurado ao ombro pela bandoleira, foi retirado e posto em posição de defesa. O sabre, preso ao fuste, transformava o fuzil numa baioneta. No meio da avenida, com um simples fuzil, ele se plantou diante da pesada máquina de guerra que tinha um canhão de 75 mm apontado para a frente.
— Não pode passar!
Reparando melhor, José Alfredo pôde ver várias estrelas gemadas, características de oficiais superiores. Eram coronéis, e um deles falou:
— Desejamos apenas contornar o obelisco. A avenida é estreita para a manobra do tanque…
— A ordem que tenho é de não deixar passar ninguém!
Eles não insistiram. Manobraram com dificuldade e voltaram elogiando, certamente, o procedimento do soldado José Alfredo.
Os nossos dedos se descontraíram do gatilho. Imaginávamos que a pesada máquina de guerra iria disparar seu canhão contra nós!
Com estas lembranças na cabeça, fui para o alojamento. Não tive vontade de tomar chá com pão, conforme me sugerira o sentinela das 22 horas.
— Eu vou é dormir. Tenho que tirar reforço às 2 horas da manhã!
Resignado, subi para o alojamento, no primeiro andar. Pendurei o fuzil na cabeceira da cama-patente e deitei-me de dorso, vestido como estava, apenas desabotoando o cinto de guarnição. As balas e o sabre machucavam-me um pouco os músculos das costas e dos lados. Depois de conseguir acomodar-me com certa dificuldade sobre o colchão, acabei por adormecer, vencido pelo cansaço.
Parece que eu tinha dormido muito pouco — e não me enganara, afinal, eu fora para o alojamento depois das 22 horas.
— 35! 35! Está na sua hora!
(Hora de quê? — eu me interrogava, ainda sonolento). Acordei. Abotoei o cinto, apanhei meu fuzil e saí. Se o meu dia fosse chegado, logo se veria.
Ao passar pelo sentinela do portão, fiz a continência regulamentar, sendo por ele advertido:
— 35, junto à casa da bomba tem um posto de metralhadora, e embaixo da marquise do Edifício Tietê tem outro.
A bomba que puxava água do mar para a piscina ficava no pé do Morro do Leme, e o Tietê era o prédio que ficava mais próximo depois de uma casa onde funcionava uma escola da Sociedade Pestalozzi, próxima à praça fronteira ao quartel.
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A informação do sentinela foi a melhor notícia, a melhor coisa que ouvi naquelas últimas 24 horas! Para que algum inimigo me alcançasse, teria que enfrentar antes o fogo das metralhadoras, e eu, evidentemente, daria também os meus tiros, pois a praia estava à distância de um salto, e como trincheira eu tinha à minha disposição a amurada que separava a calçada da areia.
Agora tranquilo, segui para o posto onde substituí o companheiro cuja hora terminara. Não era mais o José Alfredo, e não me lembro quem estava de reforço no quarto anterior.
Aquela data, que ganhara destaque no calendário, era o 29 de outubro de 1945. O acontecimento especial que marcava aquela data era a queda da ditadura Vargas, que por muitos anos fora garantida por seu Ministro da Guerra, o General Eurico Gaspar Dutra, com o decidido apoio do Chefe do Estado-Maior, o General Pedro Aurélio de Góes Monteiro. De fato, caía naquela data um homem que, com mão de ferro, governou o Brasil durante três lustros, tendo em cada estado um interventor nomeado, evidentemente, pois Getúlio não gostava de eleição, nem indireta…
Esses homens eram paus-mandados do chefe. Adversários, com eles, era no trabuco, pois naquele tempo ainda não havia direitos humanos, invenção bem mais recente. Alguns deles: Pedro Ludovico Teixeira, em Goiás; Agamenon Magalhães, em Pernambuco; Silvestre Péricles de Góes Monteiro, em Alagoas; Coronel Magalhães Barata, no Pará; Moisés Lupion, no Paraná, etc., etc.
Havia, porém, interventores mais brandos, mais negociadores, mais políticos, como Ademar de Barros, de São Paulo; Benedito Valadares, de Minas Gerais; Amaral Peixoto, do Rio de Janeiro.
(Estas coisas que estou relatando, eu as trago apenas na memória, não recorro a nenhum documento, ficando assim justificada alguma omissão. Excesso, contudo, não há!)
O Getúlio Vargas que estávamos depondo naquela data tinha, porém, muitos homens a incensá-lo, além dos interventores. Esses homens, que com ele colaboravam, coonestavam os seus atos e procuravam adivinhar os seus mais recônditos e hipotéticos desejos. Quem não ouviu falar de Filinto Müller e de Etelvino Lins? Refiro-me à primeira edição deles, a edição primitiva, grossa, sem brunimento, de arrancar unhas com alicates, enfiar cunhas embaixo das unhas. (Eles eram chefes de polícia, um do Rio, naquele tempo Distrito Federal, outro de Pernambuco, dos adversários. (Leiam o que David Nasser escreveu — sim, David Nasser, da antiga revista O Cruzeiro. Perguntem aos parentes de Graciliano Ramos, do General Euclides de Figueiredo…).
Perguntem também aos parentes do estudante Demócrito de Souza Filho, morto em Pernambuco. Perguntem…
Se você achou esse relato interessante, vale saber que ele faz parte da obra Memórias de um Ex-Sargento, do escritor e historiador Osvaldo Rodrigues Póvoa(11/05/1925 – 09/11/2023). Prepare-se para a sequência da história, com o desfecho daquele dia inesquecível — marcado pela deposição do presidente Getúlio Vargas em 1945, no Forte Duque de Caxias — que será publicada aqui no site Mundo em Revista na próxima quinta-feira, 29 de maio de 2025!
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