Memórias de um Ex-Sargento: 5ª Crônica “Aventuras de um Recruta”

Em meio à rotina dura dos recrutas, um dia anônimo se transforma em um alerta real. O que aconteceu no quartel naquele 1945?

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A princípio, aquele parecia ser só mais um dia qualquer, perdido no meio de tantos outros no calendário. Nada indicava que traria algo fora do comum.

— Reco, imagem do cão! Vai fazer faxina, filho da p…!

No quartel, antiguidade é posto, entendendo-se por antiguidade ter passado a pronto, o que, em linguagem profana, significa ter sido aprovado nas provas práticas de manejo de armas, como desmontar e montar fuzis e metralhadoras correndo contra o relógio, chegando alguns soldados à perfeição de executar essas tarefas de olhos vendados, além de, evidentemente, conhecer peça por peça das mencionadas armas.

Eu fazia parte de um pequeno grupo de recos incorporados pouco tempo antes: um barriga-verde, um carioca, um mineiro, um fluminense e um goiano, que era eu. Só não consigo lembrar-me do nome do fluminense, um sujeito magro, meio corcunda, que era chamado de Campista por motivo óbvio. Eis os seus nomes, pela ordem: Adolfo, José Alfredo, Clélio, o Campista e eu.

— Cabo Adaltivo, leve os recrutas pra lavar as privadas.
Lá ia o cabo procurar os recrutas, que ficávamos meio fora do campo visual dos graduados e dos soldados antigos, para nos livrarmos um pouco das mandações e das chacotas.

— Reco, bem da bóia! Vieram matar a fome, filhos da p….!

O Clélio, lembro-me bem, se zangava com os outros por se exporem muito. Ele não fazia isso, pois havia uns esconderijos razoáveis, umas caixas contendo telêmetros, atrás das quais ele se escondia, sob o pretexto de se resguardar do vento frio vindo do mar…

Aquele dia perdido no calendário, dizia eu, resolveu sair do anonimato. O quartel entrou em regime de sobreaviso, o que, em linguagem militar, traduz uma situação de expectativa. Ninguém pode deixar o quartel sem autorização do Oficial de Dia. Também o ingresso de pessoas é controlado, evidentemente.

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Naquele dia, que começava a mostrar-se diferente, eu estava escalado para o serviço de reforço, uma espécie de sentinela avançada do quartel, a 4.ª Companhia Independente de Artilharia de Costa e Forte Duque de Caxias, localizada no Leme, uma das extremidades da Praia de Copacabana.

Por volta das 15 horas, o capitão Aldo Pereira, gaúcho e comandante do Forte, recebeu ordem de colocar a unidade sob seu comando em regime de prontidão absoluta, e as pesadas grades que formavam o portão de entrada foram cerradas. A tensão aumentava.

O sargento Rui de Melo Duarte Filho, um bom mineiro de quem ainda terei oportunidade de falar, dirigiu-se ao corpo da guarda onde eu me encontrava e bradou, em linguagem militar:

— 35, chame os outros recos e me acompanhem!

“35” era eu, mais precisamente, 435, meu número de chamada. Saímos os cinco recrutas, seguindo o sargento Rui até o almoxarifado, onde recebemos fuzis e cartuchos de festim. Dali, partimos para a encosta do Morro do Leme, onde aprendemos uma coisa muito importante: carregar o fuzil, apontar e atirar. Após um rápido treino, recebemos munição para tiro real e fomos colocados em posição de tiro no largo portão de entrada que dava para a Praça Almirante Júlio de Noronha.

Deitamos ali no asfalto, os canos dos fuzis apoiados nas grades do portão, eu e alguns companheiros, distribuídos em dois postos de metralhadoras cujos canos se deslocavam pelas ameias, num ângulo de cerca de 100 graus em cada lado do corpo da guarda. Nossos invisíveis sensores mentais, como que sintonizados com os fatos que tornavam aquele dia cada vez mais diferente, transmitiam-nos, com impressionante precisão, o gradual aumento da tensão.

O soldado Póvoa, empunhando uma metralhadora leve, estava no pátio interno do quartel. Ao fundo, o pé do morro do Leme, no ano de 1945.

Por volta das 17 horas, o soldado de sentinela foi retirado de sua guarita e mandado deitar-se conosco, todos apontando os fuzis para a praça e para a Rua Gustavo Sampaio, que, do outro lado, ficava defronte ao portão.

Dois reforços, postados a cerca de cem metros do quartel, permaneciam atentos: um no início da Rua Gustavo Sampaio e outro na Avenida Atlântica. A decisão de posicionar reforços nesses pontos aumentou terrivelmente a expectativa.

Quando o sentinela do portão principal é retirado do seu posto, é sinal de que algo muito importante está acontecendo. Que emoção estranha se sente! Ali, somos muitos, uns com fuzis, outros com metralhadoras, o que nos transmite uma sensação de grande segurança. O importante é que ninguém espera receber um tiro. Ao contrário, todos estão atentos, o dedo no gatilho, aguardando, e até desejando, a ordem de fazer fogo…

Tenho a impressão de que, num momento como esse, ninguém sente medo; todo soldado é valente. Os neurônios parecem ficar eriçados, se é que assim se pode dizer, colocando-nos em permanente estado de alerta.

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A sequência da história

Se você achou esse relato interessante, prepare-se: o que vem a seguir promete ainda mais tensão e surpresas. A sequência da história, com o desfecho daquele dia inesquecível no Forte Duque de Caxias,  será publicada aqui no site Mundo em Revista na próxima quinta-feira, 22 de maio de 2025!

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