Memórias de um Ex-Sargento: – 2ª Crônica “A Pensão da Rua Ipiranga”
Memórias de um Ex-Sargento": uma crônica cheia de alma, relembrando os dias no Rio de Janeiro, salários curtos e boas amizades na Cinelândia
Meu sonho era ser mecânico. Mecânico de avião. Depois de muitos tropeços, não conseguindo o meu intento, comecei a procurar emprego, pois, pensava eu, necessitava libertar meu pai da obrigação de mandar dinheiro para meu sustento.
Não podia obter grande coisa, pois não era reservista, e a quitação militar era documento imprescindível à obtenção de emprego melhor. Essa circunstância me levou a trabalhar no cinema. Explico melhor. Levou-me a trabalhar no cinema Capitólio, como vagalume…
Deram-me uma farda bonita, cheia de galões dourados e botões, também dourados, que eram abotoados até o pé da goela, se é que goela tem pé, dando uma leve impressão de enforcamento.

O Capitólio ficava na Cinelândia, ao lado do Amarelinho, bar muito frequentado pela boemia do Rio, uma espécie de Galeria Cruzeiro, que ficava na Avenida Rio Branco. Também ali ao lado ficava o cinema Pathé, e, mais à frente, na esquina, o Odeon, no edifício de mesmo nome.
O emprego, por demais modesto, me proporcionava, contudo, Cr$ 380,00 (trezentos e oitenta cruzeiros) por mês, fazendo com que eu dispensasse a mesada de meu pai. Eu fazia de tudo no cinema, principalmente ser artista, isto é, sobreviver com aquele irrisório salário!…
O serviço que exigia maior cuidado era a limpeza das privadas e mictórios, que era realizada várias vezes por dia, sob a severa fiscalização do senhor Afonso, o empregado mais antigo, que fazia também a distribuição dos serviços e as recomendações, com sua fala fina e arrastada, como se alguém estivesse a apertar-lhe a goela…
O serviço de que eu menos gostava era o de porteiro, que obrigava a gente a ficar feito uma estátua fantasiada, vestida naquele fardão azul, todo cheio de alamares e vivos vermelhos e amarelos, constituído de duas peças: as calças e uma jaqueta. Ali recebíamos os ingressos e os colocávamos numa urna. Aquela fantasia nos dava o aspecto de um ridículo general de republiqueta.
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Por ali passavam muitos hóspedes da pensão da Rua Ipiranga, e eu não gostava que eles me vissem ali, para dizer: — Olha ali, o goiano é porteiro de cinema… (Na pensão eu era o goiano).
O Capitólio não exibia filmes de longa-metragem, e sim desenhos animados, seriados e jornais (noticiários da guerra). Eu preferia trabalhar no salão, como vagalume, pois aquilo facultava algum dinheiro extra, as gorjetas que alguns espectadores punham na mão da gente, e ainda podia ver os filmes. Vi as grandes batalhas da guerra do Pacífico: Guam, Guadalcanal, Corregidor e também as da Europa, como a invasão da Normandia, nas costas da França.
Aos domingos, as sessões começavam mais cedo, e eu só tinha permissão de ir almoçar às 14 horas.
Da pensão guardo com muito carinho a lembrança de Dona Francisca, a cozinheira, uma espécie de mãe que arranjei por lá. Era uma mulatona robusta, de meia-idade. Tinha pena de mim, sabedora que era de que eu deixara minha família nos longínquos sertões de Goiás. Ouvia chamarem-me de Goiano, de uma terra distante que seguramente nunca soubera antes existir. Mas tinha a intuição maternal de que eu precisava de ajuda.
— Olha, meu filho, quando você voltar do cinema, já fui pra casa. Mas vou deixar um prato caprichado pra você, dentro do forno do fogão! Já falei com Dona Alexandra. Você mesmo pode entrar e pegar. Tá arrumadinho lá!
Faminto, eu chegava ali pelas duas e meia da tarde e encontrava aquela pratarrada de comida variada, graças à minha boa protetora, Dona Francisca.
Na pensão morava um cearense chamado Gotardo, candidato à Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Ele enchia cadernos e mais cadernos de cálculos algébricos com letras e números, bem legíveis, o que me enchia de admiração.
Outro cearense, muito inteligente e brincalhão, era o senhor Barros, figura muito divertida que trabalhava nos Correios como tradutor, pois falava muito bem o inglês, segundo diziam os da pensão. Lembro-me muito de que ele gostava de falar com a gente em tom de brincadeira.
— Let me see your backide! (Algo como “mostre-me o traseiro”).
Bebia que nem raposa velha e, nessas ocasiões, que eram frequentes, tornava-se cômico.
Certa vez, chovia torrencialmente e eu estava retido ao lado da Leiteria Mineira, na Galeria Cruzeiro, voltado para a Rua São José, quando vi, do outro lado da rua, sob a marquise de uma farmácia, o senhor Barros. Baixinho, tez arroxeada pela bebida, queixo fino, cabelo à escovinha. O modo como ele se encontrava revelou de imediato que ele estava bem tonto, tentando equilibrar-se com a mão direita apoiada na parede. Parecia indeciso. Como atravessar a rua com tanta chuva, que nem os esgotos conseguiam dar vazão e a água já subia muitos centímetros no asfalto?
Fazendo, ao que parece, um grande esforço, ele procurou aprumar-se, retirando a mão da parede. Marcou a direção do outro lado da rua, colocou uma mão sobre a outra e as duas sobre a cabeça e marchou para o lado onde eu estava, tendo-se molhado, como é óbvio, completamente. Dispondo já de alguma intimidade com ele, eu lhe disse:
— Ô Barros! O seu guarda-chuva não impediu que você se molhasse completamente!…
Apoiando-se no meu ombro para equilibrar-se, ele disse, num esgar de bêbado:
— Let me see your backide!
Eu lhe respondi em cima da bucha:
— Se você quer ver o backide de alguém, que vá bater em outra porta.
Ele riu gostosamente, pois percebeu que eu descobrira o significado da frase em inglês…
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E o senhor Raul? Ele morava com Dona Alexandra, a grega, dona da pensão. Embora não usasse bigode, tinha jeito de português, com uma diferença: era meio malandro. Não se preocupava muito, aliás, de modo nenhum, com essa extravagância que se chama trabalho. Nem precisava, pois Dona Alexandra dava tudo o que ele precisava, inclusive carinho, evidentemente!… Era aquela vidona despreocupada, tendo mais que o essencial à mão, sem trabalhar!
Enquanto morei na Rua Ipiranga, foi essa a vida do senhor Raul. Depois, ouvi falar que ele arranjou emprego numa loja de eletrodomésticos da Rua Senador Dantas.
E o Armando, filho de Dona Alexandra, ele era cadete da Aeronáutica. Nunca ouvi uma palavra dele. Chegava com aquela farda vistosa, se recolhia ao seu quarto e ligava a radiola para ouvir músicas americanas, como rock e blues. Depois que saí da pensão, nunca ouvi falar dele, nem durante as crises ocorridas anos depois, envolvendo as Forças Armadas.
O senhor Antônio, o garçom, era outra figura divertida. Vascaíno de comprar briga, bebia que nem o senhor Barros, o que é a mesma coisa que beber que nem raposa, como já disse. É verdade que eu nunca vi raposa beber, mas dizem que ela bebe. A demora é ela encontrar uma vasilha aberta, com cachaça. Bebe até cair e depois dana a gritar, que quem não conhece se arrepia todinho, pensando que é coisa de assombração.
Foi ele quem, pela primeira vez, me levou a Copacabana, onde fomos ao cinema Rian. Achei lindo aquele espetáculo das ondas arrebentando-se na areia.
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Nota 1:
A crônica “A Pensão da Rua Ipiranga“, que faz parte do livro Memórias de um Ex-Sargento, de Osvaldo Rodrigues Póvoa (13/05/1925 – 09/11/2023), narra a chegada do autor ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1944. Nesse texto, ele descreve sua hospedagem em uma pensão na Rua Ipiranga e seu primeiro emprego no cinema Capitólio.
Nas próximas semanas, vamos publicar, uma a uma, as crônicas que compõem o livro, permitindo que os leitores acompanhem de perto esse relato pessoal repleto de memórias, personagens reais e acontecimentos históricos.
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