Memórias de um Ex-Sargento – 1ª Crônica “O Avião”
Crônica "O Avião", de Osvaldo Póvoa, narra o começo de sua viagem ao Rio de Janeiro nos anos 1940, cheia de descobertas e memórias
Morando na Fazenda Santo Antônio, em Dianópolis(TO), habituei-me a ver o urubu como uma ave que fazia parte da rotina de nossa vida ali, ora nos varais de carne posta ao sol, tentando, com o seu bico adunco, arrancar um pedaço dela, ora nos voos a grandes alturas, os olhos de lince adivinhando uma possível carniça. Súbito, as asas murchas, o corpo inclinado em ângulo agudo, a mergulhar cortando os ares, barulhentamente, pousando com suavidade.
No chão, o seu andar é desengonçado, gingado, andar de urubu malandro, enfim. Não me refiro ao urubu-rei, com a sua plumagem enfeitada de penas brancas e a cabeça ornamentada que lhe dá um toque majestático. Eles são mais raros, vivem resguardados dos olhares curiosos. Falo do urubu comum, de cabeça pelada, preta retinta, cheia de rugas, plumagem preta, ave feia e mal-cheirosa, mas que, nas alturas, quase rente aos flocos de nuvens brancas, são um espetáculo belo de se ver…
Para alçar vôo, bate as asas com rapidez e depois, espaçadamente, a aproveitar as correntes aéreas para galgar grandes alturas e ali ficar horas planando suavemente ao sabor das correntes atmosféricas. Foi com esse urubu na cabeça que, pela primeira vez, ouvi falar de avião, cuja imagem em minha mente era preta e, evidentemente, batia as asas para voar.
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Um dia, pela década de1940, um barulho nos céus me chamou a atenção. Embora estivesse muito alto, percebi que era um avião e, para minha surpresa, não me parecia bater asas, nem a cor me parecia preta…
Em Barreiras, a caminho do Rio, finalmente eu ia ter a oportunidade de acabar de vez com aquela dúvida, leve, é verdade, que ainda persistia em minha mente. Será que avião não batia asas mesmo?! Será que não era preto?!
Várias vezes fui ao aeroporto daquela cidade baiana, localizado no alto de uma serra, com oito pistas, construído durante a II Guerra Mundial para dar apoio logístico a aviões americanos e para aeronaves comerciais. Na verdade, tratava-se de uma base aérea. Eu ia tentar uma vaga em avião da Força Aérea Brasileira.
Além de aviões militares, ali desciam também aviões civis das empresas Panair do Brasil, da Real Aerovias, do Lóide Aérea Brasileiro, da Cruzeiro do Sul, além de outras.
Finalmente, conseguida a vaga, eu embarcava corajosamente para a Capital da República, levando no bolso apenas o endereço de trabalho do meu primo João Rodrigues Leal que batalhava bravamente na cidade grande, como modesto funcionário do Departamento dos Correios e Telégrafos então subordinado ao Ministério da Viação e Obras Públicas.
No momento em que eu entrava no avião, o Senhor Pedro Mesquita me entregou uma carta:
— Entregue esta carta ao meu cunhado Juarez, ele mora numa pensão da Rua Ipiranga, você pode até ficar lá…
Foi assim que fui parar naquela pensão. Com a viagem, desfez-se de vez aquela imagem de minha infância: o avião não era preto nem batia asas para voar…
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“Memórias de um Ex-Sargento”
Osvaldo Rodrigues Póvoa
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Nota 1: A crônica “O avião“, presente na obra “Memórias de um Ex-Sargento” de Osvaldo Rodrigues Póvoa(13/05/1925 – 09/11/2023), relata o início de uma longa viagem ao Rio de Janeiro, em janeiro de 1944. Nela, o autor relembra sua infância na Fazenda Santo Antônio, em Dianópolis(TO) e o fascínio infantil ao conhecer, pela primeira vez, um avião — tão diferente do urubu que povoava sua imaginação.
Ao longo das próximas semanas, publicaremos, uma a uma, as crônicas que compõem o livro, oferecendo aos leitores a oportunidade de acompanhar de perto esse relato pessoal repleto de memórias, personagens reais e episódios históricos.
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